Volta ao mundo para chegar ao Brasil – EL PAÍS

“Só me interessa o que não é meu”, afirmou Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico, que o escritor modernista escreveu em 1928 em defesa, entre muitas coisas, do ato antropofágico de devorar o outro para assimilá-lo e crescer com ele. Viajar, para mentes inquietas, é uma maneira de viver essa antropofagia cultural, seja na pele ou então através da literatura de viagem – um gênero literário dos mais antigos, mas que de tempos em tempos ganha um boost com novos títulos e estilos de escrever.
Em língua portuguesa, Alexandra Lucas Coelho – que conhece bem o legado de Oswald de Andrade – é um nome a se prestar atenção nessa área. Autora nômade que fez da profissão de jornalista o caminho para percorrer o mundo, ela deixou sua Lisboa natal mais de uma vez em busca de histórias que transforma em reportagens, crônicas ou romances. Depois de morar no Rio de Janeiro entre 2010 e 2014, Alexandra esteve recentemente no país para divulgar um resultado dessa experiência: o livro de crônicas Vai, Brasil, editado aqui pela Tinta-da-china.
Apesar da proximidade natural entre portugueses e brasileiros, a escritora conta que só pôde aterrissar em terras brasileiras depois de viver no Oriente Médio e na Ásia Central, onde trabalhou como correspondente do jornal português Público. “Vi de perto o colonialismo inglês, o francês, o otomano… Depois, quando fiz uma viagem ao México em 2010, o espanhol. Quando tomo a decisão de vir, estava pronta para confrontar a história do meu país com os efeitos do seu próprio colonialismo”, diz.
Mas seu objetivo passa longe de cristalizar elos do passado que limitem o entendimento do presente e, pior, criem empecilhos para o futuro. “Dar uma volta no mundo para chegar aqui, já depois dos 40 anos, me permitiu uma liberdade no olhar, fora de dois pesos que criam muitos equívocos entre brasileiros e portugueses: a culpa, por um lado, e a arrogância, por outro”, ela complementa, exalando o tipo de curiosidade com que viajou o Brasil do Oiapoque ao Chuí.
Vai, Brasil é um reconto pessoal de como Alexandra Lucas Coelho vai encontrando “a história desses 500 anos” todos os dias, “no porteiro do prédio, no menino negro da favela, na burocracia, na corrupção, na repressão, em tudo isso”. Lançado ao redor da Festa Literária de Paraty, onde a autora esteve ao lado da ensaísta argentina Beatriz Sarlo para debater literatura de viagem, traz crônicas sobre cidades, personagens e coisas brasileiras – para usar um termo que resuma tudo o que é nosso.
O arco do livro começa no final do mandato de Lula, em 2010, e se estende à agitação das manifestações de rua que tomaram as grandes capitais brasileiras, incluindo o Rio de Janeiro, em 2013. Brilha mais o Rio, onde Alexandra visitou escolas de samba, terreiros de umbanda, bailes de funk e ficou a maior parte do tempo. Porém não faltam São Paulo, onde há restaurantes do mundo inteiro –mas onde nada supera a padaria –, Belém, a primeira cidade fundada na Amazônia brasileira, e outros destinos onde a autora se encontra com brasileiros (figuras públicas e anônimas) que a guiam pelos seus Brasis para permitir que ela construa o dela. Sem medo de clichês, diga-se de passagem, mas lançando mão deles para abandonar a generalização e chegar ao detalhe.
Nem tudo, sendo assim, são cartões postais. Alexandra, que cobriu in loco o conflito Israel-Palestina e foi correspondente no Afeganistão, descobriu em primeira pessoa a violência brasileira. “A primeira vez em que estive num baile funk organizado pelo tráfico na Mangueira, antes da comunidade ser ocupada pela polícia, foi a primeira vez que vi armas que só tinha visto no Oriente Médio. Não eram simples fuzis. O que você tem no Rio de Janeiro é guerra”, observa. “Há uma violência militarizada, que também vem do Estado, que eu só tinha encontrado em lugares onde a guerra é assumida como tal”, completa.
O idioma português é um dos terrenos onde a experiência profunda da viagem se deu de maneira irreversível. Ela escreve em português de Portugal, e a ele somou palavras e sons do brasileiro –e até criou um híbrido das duas coisas, linguagem que ela está experimentando, em parte, em seu terceiro e ainda inacabado romance, Deus dará, que se passa no Rio. “Alguns leitores portugueses questionavam isso ao ler minhas colunas, porque viam nisso uma espécie de rendição. Como se tivesse sido derrotada por outra língua portuguesa, quando para mim era o contrário: um processo de expansão”, argumenta.
É com essas ânsias antropofágicas –e um claro “método amoroso”, como definiu o filósofo Nietzsche ao dizer que “quem realmente quiser conhecer algo novo fará bem em receber essa novidade com todo o amor possível”– que Alexandra entrega um Brasil que também é nosso.
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